domingo, abril 30, 2006

Um carnaval



Vam ao baile vem ao baile
Pelo braço ou pelo nariz
Vem ao baile vem ao baile
E vais ver como te ris

Deixa a tristeza roer
As unhas de desespero
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo vem beber

Vem ao baile das palavras
Que se beijam desenlaçam
Palavras que ficam passam
Como a chuva nas vidraças

Vem ao baile, oh tens que vir
E perder-te nos espelhos
Há outros muito mais velhos
Que ainda sabem sorrir

Vem ao baile da loucura
Vem desfazer-te do corpo
E quando caires de borco
A tua alma é mais pura

Vem ao baile vem ao baile
Pelo chao ou pelo ar
Vem ao baile baile baile
E vais ver o que é bailar

Alexandre O'Neill

Foto:Stanmarek

Variação momentânea sobre tema de m. t. b.



Casa,
oh palavra tão antiga e impensável
como um farol da infância
visto de baixo, da sua base,
e a tocar o céu.

casa,
ideia tão grande e indizível
que convocas
a vida e a morte,

e a sua sucessão ao longo
de incontáveis gerações.

mas também o silêncio mais absoluto

das aldeias negras,
debruçadas
sobre um mar atlântico
ainda encoberto,

na sufocação daquilo que mora
sobre um limite total.

por isso não tenho, nunca tive,
uma casa,

como nunca tive um deus
diante do qual me prostrar

- sou um órfão assumido
de pai e de mãe.

e não me atrevo a encher os pulmões
de ar,

com medo do que poderia advir

se acaso tudo começasse a transbordar.

Vítor Oliveira Jorge
29.4.06

Foto:Marília Campos

sábado, abril 29, 2006

Dia Mundial da Dança



Foto:Sascha Hüttenhain

Crença



Eu sou dos que crêem
nas sombras que descem nos raios do luar,
que há fadas e elfos, no bosque, a bailar,
só que não se vêem...


Poema:Manuel Filipe

Foto:Stanmarek

O teu nome



Flor de acaso ou ave deslubrante,
Palavra tremendo nas redes da poesia,
O teu nome, como o destino, chega,
O teu nome, meu amor, o teu nome nascendo
De todas as cores do dia!

Alexandre O'Neill

Foto:Yuri B

sexta-feira, abril 28, 2006

Um dia



Um dia eu vou fazer um romance
com as histórias da minha rua
antes de se chamar Silva Porto
e os pretos irem embora.
Vai entrar a lua e meninos sem cor
a Domingas quitata, o sô Floriano do talho
com muita mistura de amor
e muito suor de trabalho.
Vou meter as cabras e os cães vadios da velha Espanhola
os batuques da Cidrália e dos Invejados,
os batalhões do "Treze" e do "Setenta e Quatro",
o bêbado Rebocho, o velho Salambio',
a Joana Maluca da garotada,
cajueiros, cubatas, lixeiras,
capim e piteiras,
e mesmo no fim da história,
quando os homens estão desesperados
e as fardas passam em fila,
acendo um sol de Fevereiro,
semeio algumas esperanças
e parto com o meu veleiro
a dar uma volta ao Mundo!

António Cardoso(Angola)

Imagem daqui

quinta-feira, abril 27, 2006

Si mis manos pudieran deshojar



Yo pronuncio tu nombre
en las noches oscuras,
cuando vienen los astros
a beber en la luna
y duermen los ramajes
de las frondas ocultas.
Y yo me siento hueco
de pasión y de música.
Loco reloj que canta
muertas horas antiguas.

Yo pronuncio tu nombre,
en esta noche oscura,
y tu nombre me suena
más lejano que nunca.
Más lejano que todas las estrellas
y más doliente que la mansa lluvia.

¿Te querré como entonces
alguna vez? ¿Qué culpa
tiene mi corazón?
Si la niebla se esfuma,
¿qué otra pasión me espera?
¿Será tranquila y pura?
¡¡Si mis dedos pudieran
deshojar a la luna!!

Federico Garcia Lorca

Foto:Stanmarek

Texto e comentário



I

Ergui-me apoiado em tudo
como um ninho de cegonhas

reclino-me segundo Moore
totalmente
sobre nada

II

Sempre de costas
como um projéctil estático
porque a história é um fio preso
conforme o sangue

entregue em série
à traição do gasto:
o corpo é amiúde
uma encomenda
sem qualquer intimidade.

Boaventura de Sousa

Foto:Lutz Behnke

quarta-feira, abril 26, 2006

O Velho que Nunca Amou



"Contam que o elevado e santo Bajezid Bistami encontrava-se falando a uma grande e atenta platéia. Todos os presentes, velhos ou jovens, estavam fascinados com suas palavras. No auge deste encantamento, quando seu discurso enlevava a todos, entrou um fumador de ópio, e com a fala algo arrastada disse:
- Mestre, meu burro se perdeu. Ajuda-me a encontrá-lo.
- Paciência, meu filho, eu vou achá-lo - disse-lhe Bajezid Bistami, continuando seu sermão.
Após algum tempo, enquanto ainda discursava, perguntou aos presentes:
- Existe alguém entre nós que nunca amou?
- Eu - disse um velho levantando-se - eu nunca amei ninguém, desde minha mais remota juventude. Nunca o fogo da paixão consumiu minha alma. Para que não turvasse minha mente, nunca deixei o amor ocupar meu coração.
O venerando Bajezid Bistami voltou-se então para o fumador de ópio que pouco antes o havia interrompido e lhe disse:
- Vê, meu filho, acabo de achar teu burro! Pega-o e leva-o daqui."

Desconheço autor (Recebido por mail)

Imagem daqui

Me gustas cuando callas porque estás como ausente



Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.
Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía.
Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle con el silencio tuyo.
Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.
Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Pablo Neruda

Foto:Gianni Candido

segunda-feira, abril 24, 2006

Paisagens são sempre segredos sobre segredos



O medo pulsa dos corpos embarcados
às vezes se agarra aos cais imóvel
a aguardar ordens submisso
ou se perde numa nuvem incisiva e fatal
Aqui
nas dunas que me sustentam
nesta onda de sol molhado estendido
nada mais importa
nas paisagens assustadas pelos banhistas
apenas a tarde caíndo
os despojos de mais um dia de praia
e a luz amarela a pintar-nos o que ficou das areias.
Para lá da primeira água que nos toca
sempre fria
resta o silêncio da espuma no recuo do mar
e o planáltico brilho do quartzo
onde buscamos por marcas e afundamentos
sensações novas
enquanto a solidão fica derretida no sol
Está mais quente agora a água
tocada por gaivotas famintas que ardem
sinto-o porque sou de mar
sei dos oceanos as poucas palavras
que sobrevivem respirando
de praias não sei quase nada
paisagens são sempre segredos
sobre segredos
pintados ou não
todas as respostas estão aí
nessas estepes que guardam beijos enterrados
por entre a erva que lateja
a inutilidade das palavras.

João Martim

Foto:Margarida Delgado

Apparatus musico-organisticus



São duas da manhã em Passau,
quando, não conseguindo dormir,
o Kapellmeister do bispo,
Georg Muffat,
atravessa os corredores do palácio

e de corredor em corredor,
ao longo do trajecto,
de archote em archote,
de prega em prega
no roupão arrastado,
o seu semblante
se vai tingindo progressivamente
dos mais diversificados tons.

é algures numa noite dos finais
do século dezassete,
numa Europa, como sempre,
em desassossego.

mas agora na igreja,
onde tudo está silencioso,
só as imagens
olham compungidamente
as cores do arco-íris
espalhadas no pavimento,
sobre as reticuladas decorações
do mármore

(e, em fundo de cena,
apenas dois pequenos pajens
de calças arregaçadas

fogem definitivamente
como vultos assustados
para a negridão do anonimato,
para o esquecimento da História,
ao ver a aproximação
da sombra do Músico –

conformados com o seu ofício
de simples figurantes).

assim pode-se portanto
trabalhar,
subir ao órgão, tocar as teclas,
mexer os pedais,
dobrar o corpo todo
sobre a volúpia da escrita.

enquanto nas câmaras vedadas
homens e mulheres gemem
bebendo mutuamente as suas
mais íntimas secreções;

enquanto nas florestas escuras
os cavaleiros que desenharão a História
se preparam para, ao alvorecer,
queimar com o seu esperma negro
as searas e a virgindade dos campos,

o Fabricante dos Sons –

absorto como é costume vê-lo
nas gravuras que até nós chegaram –

apenas acende uma pequena luz
que lhe ilumine a pauta,
a pena, o frasco de tinta, as teclas;

que lhe permita conduzir a mão
para a estranha, rara,
imprevisível adequação
entre todos os instrumentos:

a qual, a acontecer,
só aqui se dará;

pois o Músico sabe
que está sozinho
ante a majestade da noite,
tentando acompanhar a rota,
as linhas de luz, dos astros,
para lá dos vitrais;

e sentindo a face pálida do Senhor
que fez o Universo
a olhar para si, como se a Verdade
duma harmonia primordial
- qual choque de lança -
o interpelasse.

a esta hora, uma rosácea de milhões de cores
volteja permanentemente
sobre o enxadrezado dos pavimentos.

a capela acende-se toda
numa nitidez excessiva;

a retina é irrigada
quase até à cegueira.

por mais alta que soe
a música do Compositor, ela
é neste momento inaudível
pela corte,
pelos seus contemporâneos,
distraídos no sono, ou como sempre
no delírio dos pequenos
divertimentos, combinações,
infinitas redes de intercâmbios
que incansavelmente se entretêm
a entretecer,
embebidos no suor
das suas vidas particulares.

assim, às primeiras notas,

uma torrente entra pela nave principal
como se fosse uma inundação;
tranquila marcha, e ascensão
que salpica
as sandálias dos santos;

e todos os tectos se iluminam,
e insuflam, fazendo vibrar
as figuras pintadas,
acentuando-lhes as poses.

as cúpulas incham
como se um sistema sanguíneo
percorresse por dentro
as paredes da igreja,

e os seus vasos se dilatassem
num êxtase sem limites.

a música é então um corpo vivo
que está prestes a ser estraçoado
por quatro cavalos.

Vitor Oliveira Jorge
Abril 2006, Porto

Imagem daqui

domingo, abril 23, 2006

Momento



Tão lascivo e intenso
é esse momento,
em que invades meu corpo
com toques de dedos,
música, bicos túrgidos.
E vens, e tomas e bebes
enlaças minhas coxas,
e fendes, e dás, e me tiras.
E, antes antes que desfaleça
em morte, luxúria,
desço entre as tuas pernas;
Desejo de ter-te,
de gozar um prazer, húmido, duro,
que nada se lhe iguala.
Abraço, movimento
tuas ancas em mim,
abro minha boca,
a minha língua procura-te:
Com vontade, pressa,
emergência do querer
sentir-te crescer, provar
o sabor,
de ser preenchida por ti!

Joana de Sá

Foto:Lutz Behnke

Dia Mundial do Livro



Tela:Van Gogh

Soneto



Esbelta surge! Vem das águas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.

Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
Eis-me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! - para o expor à Morte...
Mas que ora - a infame! - não se te anteponha.

A hidra torpe!... Que a estrangulo! Esmago-a
De encontro à rocha onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos escorrendo água,

Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.

Camilo Pessanha

Foto:Maury Perseval

sábado, abril 22, 2006

Moça na sua Cama



Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas, uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,
tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.
Se me tocar, desencadeio as chusmas,
os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça em ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no torpor
dos monsenhores podados.
Posso sofrer amanhã
a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros tem seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.

Adélia Prado

Foto:Stanmarek

sexta-feira, abril 21, 2006

De outras sei



De outras sei que se mostram menos frias,
Amando menos do que amar pareces.
Usam todas de lágrimas e preces:
Tu de acerbas risadas e ironias.

De modo tal minha atenção desvias,
Com tal perícia meu engano teces,
Que, se gelado o coração tivesses,
Certo, querida, mais ardor terias.

Olho-te: cega ao meu olhar te fazes ...
Falo-te — e com que fogo a voz levanto! —
Em vão... Finges-te surda às minhas frases...

Surda: e nem ouves meu amargo pranto!
Cega: e nem vês a nova dor que trazes
À dor antiga que doía tanto!

Olavo Bilac

Foto:Sascha Hüttenhain

Corpo adentro



Teu corpo é canoa
em que desço
vida abaixo
morte acima
procurando o naufrágio
me entregando à deriva.

Teu corpo é casulo
de infinitas sedas
onde fio
me afio e enfio
invasor recebido
com licores.

Teu corpo é pele exata para o meu
pena de garça
brilho de romã
aurora boreal
do longo inverno.

Marina Colasanti

Foto:Gianni Candido

Corrente III (Nossa versão de "Lista e preferências" de Brecht)

Num dia o Zeca da Nau mete-me em duas correntes. É mesmo mauzinho!:)
Esta é para redigir a nossa versão de "Lista de Preferências" de Bertolt Brecht, pretendendo-se respostas a rimar.



I


Alegrias, fantasias.
Dores, incolores
Casos, dores
Conselhos, sabedorias


II


Meninas, assexuadas
Mulheres, sensuais
Orgasmos, mortais
Ódios, viscerais
Domicílios, ocasionais


III


Adeuses, incontidos
Artes, provocam mal entendios
Professores, renascidos
Prazeres, proibidos
Projetos, florescidos
Inimigos, interditos
Amigos, coloridos


IV


Cores, inalteráveis
Meses, incontáveis
Elementos, inseparáveis
Divindades, intocáveis
Vidas, morrer.
Mortes, renascer.


Nota: O que está em bold e em negrito é de Bertolt Brecht.


Foto:Stanmarek

A próxima "vítima" é: Palavras em linha, se aceitar:)

Actualização dia 23 às 21h 35m

"Lista de Preferências" de Bertolt Brecht


I


Alegrias, apenas as sonhadas
Dores, sentidas em silêncio
Casos, batidos em almofadas
Conselhos, de quem mete medo.


II


Meninas, e meninos que se amam
Mulheres, e homens que se odeiam
Orgasmos, que nunca sentiram
Ódios, que assim se cultivam
Domicílios, onde se espancam!


III


Adeuses, tão provocatórios
Artes, tão medievais
Professores, de manicómios
Prazeres, de animais
Projetos, sem qualquer vitória
Inimigos, que ficam na história
Amigos, para nunca jamais.


IV


Cores, vencidas pelo negro
Meses, entre quatro paredes
Elementos, dum puzzle ao vento
Divindades, já inexistentes
Vidas, que nesse sofrimento
Mortes, escape e latentes!


Fatyly

quinta-feira, abril 20, 2006

Mulata



Os teus defeitos são graças
que mais me prendem, querida...
Mistério de duas raças
que se encontraram na vida.

E, no mato, em nostalgia,
num exílio carinhoso,
fizeram essa alegria
do teu olhar misterioso.

E deram forma de sonho,
em seu viver magoado,
a esse estilo risonho
do teu corpo bronzeado...

Que é bem a grácil maneira
em que a volúpia se anima,
- bailado duma fogueira
queimando quem se aproxima!

A tua boca dolente,
cicatriz de algum desgosto
é um vermelho poente
no lindo sol do teu rosto.

E os beijos que pronuncias
são palavras dolorosas...
Teus beijos são tiranias,
são como espinhos de rosas...

Que me embriagam, amantes,
no éter do seu perfume...
Teus beijos são navegantes
sobre as ondas do ciúme.

Os teus defeitos são graças
desse mistério profundo...
Saudade de duas raças
que se abraçaram no mundo!

Tomaz Vieira da Cruz(Angola)

Foto:Nanã Sousa Dias

quarta-feira, abril 19, 2006

Post Scriptum



Agora regresso à tua claridade.
Reconheço o teu corpo, arquitectura
de terra ardente e lua inviolada,
flutuando sem limite na espessura
da noite cheirando a madrugada.
Acordaste na aurora, a boca rumorosa
dum desejo confuso de açucenas;
rosa aberta na brisa ou nas areias,
alta e branca, branca apenas,
e mar ao fundo, o mar das minhas veias.
Estás de pé na orla dos meus versos
ainda quente dos beijos que te dei;
tão jovem, e mais que jovem, sem mágoa
- como no tempo em que tinha medo
que tropeçasses numa gota de água.

Eugénio de Andrade

Foto:Stanmarek

Tentação número 1



Por que haveria eu de, alguma vez,
me ter precipitado?

é certo que ajudou à insensatez
o teu parecer tão intencionado.

pois ainda ao sol, sobre a nudez,
uma peça te faltava ter tirado:

e quando a visão se tornou embriaguez,
o ar despido já nos tinha enlaçado.

foi então vertical, como devia, o que se fez:
pôr ordem no que tinhas espalhado.

só não percebi depois, ao revés,
o teu olhar de corpo castigado.

Vitor Oliveira Jorge
2006

Foto:Emil Schildt

terça-feira, abril 18, 2006

O silêncio



Na sombra cúmplice do quarto,
Ao contacto das minhas mãos lentas
A substância da tua carne
Era a mesma que a do silêncio.
Do silêncio musical, cheio
De sentido místico e grave,
Ferindo a alma de um enleio
Mortalmente agudo e suave.
Ah, tão suave e tão agudo!
Parecia que a morte vinha…
Era o silêncio que diz tudo
O que a intuição mal advinha.
É o silêncio da tua carne.
da tua carne de âmbar, nua,
Quase a espiritualizar-se
Na aspiração de mais ternura.

Manuel Bandeira

Foto:Yuri B

ser fragmento



Sou olhos. Sou nariz.
Sou fundo sem matiz.
Sou rosto. Sou cabelo.
Tornei-me num pesadelo.
Sou azul. Sou cinzento.
Sou apenas fragmento.
Sou nome presente num arquivo,
porque simplesmente já não vivo.
Sou lágrima que já não corre
por um ditador que nunca mais morre...


Poema:Jacky

Foto:Imagem de Bush feita com retratos de soldados americanos mortos no Iraque.

segunda-feira, abril 17, 2006

Felídeo



O dia se estanca.
Desce o infinito.
Na sombra do teu corpo
incrusto meu beijo.
Teu sorriso se ergue,
como um leão que matará
- ainda que se arrependa.
Estilhaços dos teus toques
espalham-se pelo meu corpo.
Teu olhar,
angústia cósmica,
parasita meus sonhos.
A mão,
enfim,
desata minha pele que foge.
Não se assuste com os silêncios:
todas as estrelas caíram.
Eis-me aqui,
a erguer colunas de sorrisos,
a correr pelo universo.
Os paraísos se destruíram.
Todas as pernas se abriram...
Ainda que tua boca me desafie
e que a noite jamais termine,
abraçar-me-ei em teu pescoço
pronta a partir.
Sei.
Teu nome é proibido.
Teu mundo é caos:
estás perdido em mim.
(a alma vagueia enquanto o corpo oscila)
Mesmo que nunca me ames
basta que existas,
basta que resistas.
Meu prazer é imortal.
Olhas como um gato prestes a miar.
No meio do ato
crava-se em meu seio como punhal.
Sobrevivi.

Agostina Akemi Sasaoka

Foto:Andrey Smirnov

Inebriantes na dança do amor



Minha mente é só desejo:
Minha boca clama pelo teu beijo,
Meu corpo pulsa pelo teu toque,
Meu ser estremece pelo teu olhar.

Eu sou,
inteiramente,
lua,
nua,
tua.

Desejo acima de desejo
Corpo sustentando corpo
Alma comportando alma.

Tu
infinitamente
no meu
íntimo...

Nós dois
Inebriantes
Na dança do amor
A tocar
A sentir
A gozar
Na explosão do depois...

Ana C. Pozza

Foto:Lutz Benhke

domingo, abril 16, 2006

Onda



Conheci-o no Arpoador
garoto versátil, gostoso,
ladrão, desencaminhador
de sonhos, ninfas e rapsodos.
Contou-me feitos e mentiras
indeslindáveis por demais:
eu todo ouvidos, tatos, vistas,
e pedras, sóis, desejos, mares.
E nos chamamos de bacanas
e prometemo-nos a vida:
Comprei-lhe um picolé de manga
e deu-me ele um beijo de língua
e mergulhei ali à flor
da onda, bêbado de amor.

António Cícero

Foto:Lutz Behnke

Telefonema



Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa.
Foi então que deu pelo facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias.
Por vezes as perguntas estúpidas são de extrema utilidade.


Mário Henrique Leiria

Foto:Stanmarek

sábado, abril 15, 2006

"As raízes do nosso amor"



Amo-te porque tudo em ti me fala de África,
duma forma completa e envolvente.
Negra, tão negramente bela e moça,
todo o teu ser me exprime a terra nossa,
em nós presente.

Nos teus olhos eu vejo, como em caleidoscópio,
madrugadas e noites e poentes tropicais,
- visão que me inebria como um ópio,
em magia de místicos duendes,
e me torna encantado. (Perguntaram-me: onde vais?
E não sei onde vou, só sei que tu me prendes...)

A tua voz é, tão perturbadoramente,
a música dolente dos quissanges tangidos
em noite escura e calma,
que vibra nos meus sentidos
e ressoa no fundo da minh'alma.

Quando me beijas sinto que provo ao mesmo tempo
o gosto do caju, da manga e da goiaba,
- sabor que vai da boca até às vísceras
e nunca mais acaba...

O teu corpo, formoso sem disfarce,
com teu andar dengoso, parece que se agita
tal como se estivesse a requebrar-se
nos ritmos da massemba e da rebita.
E sinto que teu corpo, em lírico alvoroço,
me desperta e me convida
para um batuque só nosso,
batuque da nossa vida.

Assim, onde te encontres (seja onde estiveres,
por toda a parte onde o teu vulto fôr),
eu te descubro e elejo entre as mulheres,
ó minha negra belamente preta,
ó minha irmã na cor,
e, de braços abertos para o total amplexo,
sem sombra de complexo,
eu grito do mais fundo da minh'alma de poeta:
- Meu amor! Meu amor!

Geraldo Bessa Victor(Angola)

Foto:Gianni Candido

De boca aberta



Em nossas brigas não voam televisões,
nem há corporais agressões:
o verbo é a flecha que nos perfura
mesmo nos tempos e modos que a gente se censura.
Trocamos o costumeiro texto sacana
por verborrágica luta insana
e, se alguém se sente em desvantagem,
apela pra figuras de linguagem,
misturando metáforas, pleonasmos,
com licenças poéticas, no orgasmo
ao medirem forças dois titãs.
Até que já sem fala, de manhã,
mais sedentos que famintos, como taças
nos bebemos um ao outro, extasiados
de repente sem palavras, embrigados,
(eis que a língua se enrola, a gramática falha),
nos lambemos em nossa cama de batalha,
onde desejos e tesões explodem atômicos
em delírios guturais, gozando afônicos.

Urhacy Faustino

Foto:Stanmarek

sexta-feira, abril 14, 2006

Teu corpo claro e perfeito



Teu corpo claro e perfeito,

– Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...

Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...

Teu corpo, branco e macio,
É como um véu de noivado...

Teu corpo é pomo doirado...

Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...

Teu corpo é a brasa do lume...

Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...

É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Quem em antigas se derrama...

Volúpia da água e da chama...

A todo o momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...

Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Manuel Bandeira

Foto:Stanmarek

Um olhar...



Um olhar...
tudo foi fotografado.
Trago ainda na pele
o rastro do teu afago.
Meu seio,
qual monte de feno,
onde deitavas
a sonhar sereno.
Guardo nas entranhas
tuas impressões digitais.
Esquecê-las? Jamais...
Nos lábios,
o calor de uma febre terçã,
como o derradeiro beijo
de Camille em seu Rodin.

Kátia Cerbino

Foto:Sascha Hüttenhain

quinta-feira, abril 13, 2006

Cante Jondo



Numa noite sem lua o meu amor morreu
Homens sem nome levaram pela rua
Um corpo nu e morto que era o meu.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto:Michał Karcz

Tu pensas que os cardeais



Tu pensas que os cardeais
não se masturbam,
que não vêem
as telenovelas,
que vêem, quando muito, os filmes
de Bergman
e o Evangelho segundo São Mateus de
Pasolini.
Não, eles nunca lêem os livros pornográficos
e nunca pensaram em ter amantes.
Eles não conhecem o turbilhão das visões
das figuras eróticas,
eles lêem os exercícios espirituais
de Santo Inácio
e têm o odor da santidade
e irão para o céu porque nunca pecaram,
nunca acariciaram um pénis,
nunca o desejaram túmido e ardente
na sua boca casta.
Ah os cardeais como são exemplares
mesmo quando os espelhos os perseguem
com os membros e órgãos de mulheres
na fulguração da nudez liquida e candente!
Todavia eu conheço a obstinada chamado
desejo,
a sua glauca ondulação,
os seus olhos deslumbrados pela oceânica
vertigem
de um corpo embriagado pela sua simetria
e pela volúvel coerênciados
seus astros dispersos.
Não, eu não creio na inocência imaculada
dos solenes cardeais.
Eu sei que a sua carne é a mesma argila
incandescente e turva
de que o meu corpo frágil é composto.
Eles conhecem o sofrimento de ser duplos,
o vazio do desejo,
a violência nua das imagens monstruosas
,a adolescência do fogo nos labirintos negros.
Mas eu sei que os cardeais não gritam,
nem levantam a voz,
nem atravessam a fronteira do pudor
e adormecem ao rumor das orações.
É esta imagem que eu quero conservar
na religiosa monotonia do meu sono.

António Ramos Rosa

Foto:Stanmarek

Não há vagas (DESAFIO)



O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar

Foi-me passado um desafio pela Firebud que é: Divulgar para Ajudar ...

O desafio, se o aceitarem, consiste em divulgar uma associação humanitária da vossa escolha, Nacional ou Internacional. Eu convido-vos a clicar em Receitas Contra a Fome.

Um post, um link, um símbolo, um gesto solidário ...

Depois desafiem outros cinco à criatividade e à inspiração, pois divulgar também é uma forma de ajudar ...

Eu desafiei: Zeca da Nau, Jacky, Isabel Filipe, Caracolinha, Mocho Falante

Imagem daqui

quarta-feira, abril 12, 2006

Casamento



"Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe"


Perfeitamente.
Sempre cumpri o que assinei.
Portanto estrangulei-a e fui-me embora
.


Mário Henrique Leiria

Foto:Stanmarek

Se duvidas que teu corpo...



Se duvidas que teu corpo
Possa estremecer comigo –
E sentir
O mesmo amplexo carnal,
– desnuda-o inteiramente,
Deixa-o cair nos meus braços,
E não me fales,
Não digas seja o que for,
Porque o silêncio das almas
Dá mais liberdade
às coisas do amor.

Se o que vês no meu olhar
Ainda é pouco
Para te dar a certeza
Deste desejo sentido,
Pede-me a vida,
Leva-me tudo que eu tenha –
Se tanto for necessário
Para ser compreendido.

António Botto

Foto:Lutz Behnke

Liberdade em Segurança



Os réus entraram. Três. Fardados de azul. De escudo a tiracolo e
viseira erguida.
O juiz pôs a touca com um pequeno jeito de mão direita. Afirmou
- Levante-se o queixoso.
O queixoso estava deitado. Não se levantou.
- Tem alguma coisa a acrescentar quanto à sua arguição contra os
réus? - insistiu o juiz, dando outro pequeno jeito na touca.
O queixoso nada disse. Continuava deitado.
- Dadas as circunstâncias atenuantes e outras, declaro os três réus
inocentes. O queixoso demonstra à sociedade ser provocador. E
silencioso. Revolucionário alterante de ordem estabelecida.
Destabilizador da liberdade em segurança. Que os réus, absolvidos, se
retirem. Em segurança e liberdade.
Os três réus perfilaram-se. Fizeram a continência com a mão direita.
E sairam. Pela porta da direita.
Sairam os meirinhos. Pela porta do fundo.
E também o juiz. Já sem touca. Pela porta da frente.
Sairam todos.
O queixoso não. Estava deitado, como já tive oportunidade de
informar. Com cinco tiros no baixo-ventre. E morto.

Mário Henrique Leiria

Foto:José Marafona

terça-feira, abril 11, 2006

Dez Chamamentos ao Amigo



Se te pareço nocturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst

Foto:José Marafona

Pandemia ou Paranóia (Gripe das Aves)!



Aconselho a lerem este post da Biranta.

Imagem daqui

Soneto da posse



Amar é possuir. Não mais que o gozo
quero. Não sei porque desejas tanto
escravizar-me; escravizar-te. Quanto
menos me tens, mais me terás. Gostoso
é ser-me livre, alegre, escandaloso –
o peito aberto pra cantar meu canto;
os olhos claros pra ver todo encanto;
as mãos aladas, pássaros sem pouso.
Abre-me o corpo, vem dá-me o teu vale,
e a esconsa flor que ocultas hesitante,
pois o que falo o falo sem que fale
em tom de amor. Quero vaivem, espasmo -
um corpo a corpo num só corpo palpitante,
dois no galope até o sol de um só orgasmo.

Ildásio Tavares

Foto:Lutz Behnke

segunda-feira, abril 10, 2006

A morte



A morte é um estado de inexistência. Isso não existe. Por conseguinte a morte não existe.



Woody Allen

Raiva



Acordar e quebrar televisões
(como as crianças quebram os brinquedos
e ainda com eles brincam)
andar na contra-mão
ansioso em tudo
paciente em nada
(sempre a perder antes de ganhar)

pronto para levar um pé na bunda
ser abandonado
(como todos os dias somos)

estar entre os milhares de
depressivos e seus anti-
depressivos e manuais
de auto-ajuda e livros
de não-faça-tempestade-em copo-d'água
e livros do dalai-lama
(ser um deles, feliz)

estar com a merda
até o pescoço
a mesma linha sempre
a mesma linha sempre
a mesma linha sempre
(nunca uma linha é a mesma, nem a
traçada na maior exatidão dos geômetras)

até dar um tiro
espancar alguém inocente
xingar as minorias
não aceitar ninguém
(eu levo o tiro, sou espancado, minoria, ninguém)

dormir e quebrar sonhos
andar na contra-mão.

Franklin Alves

Foto:Gianni Candido

La Primavera



Ya alegra la campiña
la fresca primavera;
el bosque y la pradera
renuevan su verdor.
Con silbo de las ramas
los árboles vecinos
acompañan los trinos
del dulce ruiseñor.
Este es el tiempo, Silvio,
el tiempo del amor.

Escucha cual susurra
el arroyuelo manso;
al sueño y al descanso
convida su rumor.
¡Qué amena está la orilla!
¡Qué clara la corriente!
¿Cuándo exhaló el ambiente
más delicioso olor?
Este es el tiempo, Silvio,
el tiempo del amor.

Más bulla y más temprana
alumbra ya la aurora;
el sol los campos dora
con otro resplandor.
Desnúdanse los montes
del duro y triste hielo,
y vístese ya el cielo
de más vario color.
Este es el tiempo, Silvio,
el tiempo del amor.

Las aves se enamoran,
los peces, los ganados,
y aun se aman enlazados
el árbol y la flor.
Naturaleza toda,
cobrando nueva vida,
aplaude la venida
de mayo bienhechor.
Este es el tiempo, Silvio,
el tiempo del amor.

Tomás de Iriarte

Foto:Marília Gomes

domingo, abril 09, 2006

À vista de ti



Nunca te vi, melhor que seja assim.

Teus cabelos seriam trinados ao vento?

Poderia eu dizer “treinados”, eles seriam — porque aí corre
o vento da tardinha — sempre me dizes
do vento.

Guardo teus papéis eu guardo.

Perco-os, justo que me percam.

Um cartãozinho..., teu, a te encontrar, azul...,
azul seria a saia de sair?

Ou, haverias de preferir uma roupinha amarela
e os olhos vagos de nenhuma palavra?

O que poderei dizer quando te encontrar?..., se.

Nestes tempos modernos, teria lugar para um silêncio?

Falarias?
De que nos diríamos?

Melhor que teus cabelos fiquem ao vento.

Ah, vento doce, da noite,
como me perfumas o hálito desta noite cedo.

Soares Feitosa

Foto:Ira Bordo

sábado, abril 08, 2006

o e



o e
ai e ie o e
o o é
o ai é
ou u eu
e e e
o a a a é
e ou e e
ui e e e i
e eu ou i
é ai é eu
eu a e e
e e ai u
ou e e u
au i ie e
o o e e
a e e à

Ana Hatherly

Imagem daqui

A brusca poesia da mulher amada (III)



Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido
herói sem mácula
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a
bilirrubina
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco
quilos
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as
confidências
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.
Eis que se anuncia de modo sumamente grave
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância
já me chega o rastro.
É ela uma menina, parece de plumas
E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos
ventos
Empós meu canto. É ela uma menina.
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos
Para cantar seus réquiens e os falsos profetas
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras.
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa
Em rodopios nítidos
Criando vácuos onde morrem as aves.
Seu corpo, pouco a pouco
Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo
Como uma escura rosa voltejante
Surgida de um jardim imenso em trevas.
Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos!
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!
Alvoroçai-me, auroras nascituras!
Eis que chega de longe, como a estrela
De longe, como o tempo
A minha amada última!

Vinícius de Moraes

Foto:Eric Richmond

Dia azul



Num dia azul, meu amor.
irei contigo.

Porque é fácil partir.
(há outras ilhas)
porque a alma se vai embalando de vazio,
porque o corpo definhará com a espera.

Anunciado já o fim das maravilhas,
desterrei os meus olhos pelo rio
até ao mar,
Cintilante refúgio da quimera…

E de repente
no ar vibrou, breve e plangente,
o apelo insistente da sirene;

Largaremos lentamente, em fumo e sonhos,
entre as gaivotas que pairam no poente.

Poema:Manuel Filipe

Foto:José Marafona

sexta-feira, abril 07, 2006

Tesão e soneto



Enquanto segues em frente,
Deito-me maliciosa em teu leito,
Sentindo teu corpo quente:
Diante das tuas mãos, tudo aceito...

Roubas meus seios da minha roupa,
Acariciando-os com intensos beijos,
Deixando-me completamente louca,
Abrindo-se para ti a Flor dos meus Desejos...

Sou só desejo, sou toda tua...
Beijo-te inteiro com sofreguidão,
Enquanto deixas-me totalmente nua,

Provocando em meu corpo espasmos e gemidos,
Embalo com lambidas teu tesão

Até nos tornarmos um só em todos os sentidos...!

Ana C. Pozza

Foto:Luts Behnke

Videotape



Ai quem me dera que o fogo das paixões
de novo me tomasse por inteiro,
incendiada, no calor da discussão,
atiraria em você algum cinzeiro
(e botaria você) da porta a fora
jurando não querer ver sua cara,
nem ter seu corpo nunca mais, nem nada, nada!
Você iria embora e eu choraria
tal e qual uma criança desgraçada.
Para esquecer eu tomaria vinte uísques
e cairia, no sofá, já desmaiada.
Quando acordasse, abandonada e de ressaca,
me sentiria doente e mal amada
pois te queria ao meu lado, me cuidando,
me dando um sonrisal e uma trepada...
E aí me sentiria, como se estivesse,
num pronto socorro da Zona Oeste:
com frio, triste e desamparada.
Fecharia os olhos e pediria
a Deus para levar a minha alma...
Depois de dias de desespero
chegaria a conclusão de que você era o meu tempero
e então faria planos para te reconquistar,
mas você me ligaria antes de eu telefonar.
Com o coração aos pulos eu diria, calmamente,
que a gente precisava conversar.
Você concordaria e marcaríamos dia, hora e lugar...
E eu botaria a minha roupa mais gostosa
fingindo ser a coisa mais banal e você,
com sua camisa mais charmosa,
fingiria não notar.
No bar concluiríamos que não dava:
eu não gostava de você, mas te amava.
Você não me amava, mas gostava.
Era urgente que acabássemos com toda aquela loucura passional.
Como adultos de bom-tom brindaríamos à separação
com vinho e algumas lágrimas disfarçadas.
Você me levaria para casa e, depois do longo abraço de adeus
você estaria teso e eu molhada, prontos a repetirmos
a nossa estranha jornada.

Eliane Stoducto

Foto:Stanmarek